segunda-feira, 30 de junho de 2008

O Acordo Ortográfico: bom ou ruim

para os povos falantes do Português?
por Rildo Ferreira [ferrera13@hotmail.com]



Estou abrindo este diálogo a pedido do meu amigo Almeida (Eugénio Costa), angolano apaixonado por sua terra e por sua cultura. O jornalista e blogueiro reclamou da minha ausência temporal e pediu que eu dissertasse sobre o assunto. Este desafio eu aceitei pois o que me estimula são os desafios. Mas eu nada sabia do acordo e pedi um tempo a ele para me informar sobre o tema.

Bem, eu estou propondo um grande debate com todos e todas que não tem medo de dialogar com o diferente, abrindo mão das suas vaidades patrióticas para discutir algo que é comum a mais de 250 (duzentos e cinqüenta) milhões de pessoas divididas em oito países: Portugal (primeiro a ser citado pela origem da língua), Angola (agora por ordem alfabética), Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

Não é meu propósito defender o acordo [e nem ser contra!], mas discutir suas propriedades e analisar os interesses explícitos e não-explícitos daqueles que se manifestam a favor ou contra o acordo. Eu espero deixar claro que o que eu defendo realmente é que cada povo fale a sua língua do jeito que melhor lhe proporcione uma qualidade de vida digna; superação das dificuldades e resolução dos problemas emergentes; condições para o enfrentamento das coisas modernas do Século XXI; bem-estar social e familiar e lhe garanta paz interior e universal. Se alguma Lei ou convenção ferir esses princípios básicos para o homem e para a mulher, de qualquer idade, opção sexual ou religiosa, sou CONTRA por minha natureza humana. A língua falada deve ser para a promoção da paz interior, social e universal de todos e de todas.

Claro que há interesses comerciais, diplomáticos e culturais envolvidos neste acordo. Mas é por isso que ele é UM ACORDO. Vejamos o significado de acordo segundo Aurélio Buarque de Holanda, lexicógrafo, filólogo, professor, tradutor e ensaísta brasileiro:
Acordo(ô) [Dev. de acordar.]
Substantivo
masculino.
1.Concordância de sentimentos ou idéias; concórdia.
2.Harmonia,
concordância, consonância, conformidade: “Escobar confessou esse acordo do interno com o externo, por palavras tão finas e altas que me comoveram” (Machado de Assis, Dom Casmurro, p. 265).
3.Composição (6).
4.Combinação, ajuste, pacto.
5.Conhecimento inteiro, resultante do perfeito uso e domínio dos sentimentos; consciência:
“Fez-se-lhe rubro o pálido semblante, / Tornou-se-lhe o olhar mais chamejante / E, sem acordo, ruiu, tombou no chão...” (Augusto Gil, Alba Plena, p. 34.)
6.Tino,
prudência, tato, discrição. [Pl.: acordos (ô). Cf. acordo, do v. acordar.] Acordo de cavalheiros. 1.
Entendimento ou acordo em que as partes, cordialmente, dispensam formalidades legais, garantindo-se pela palavra empenhada. [Us., não raro, ironicamente.]

Notem que Acordo significa uma compreensão de todas as partes onde o que se coloca é comum e aceito por todos. Isso pressupõe o romper com a impositividade. Com efeito, quem será capaz de alcançar um acordo quando tenta IMPOR sua posição em relação ao outro? Ora, então o ACORDO ORTOGRÁFICO entre os países lusófonos é um pacto com vistas a um objetivo que deve favorecer a todos os pactuantes. Se o Brasil, como dizem uns, fosse o único beneficiário do acordo, certamente ele não existiria. Logo, faz-se necessário entender porque está sendo concretizado este Acordo. Vejamos o que disse o doutor José Luiz Fiorim da Universidade de São Paulo sobre o assunto:


...a duplicidade ortográfica dificulta a difusão internacional do português, na medida em que os documentos dos organismos internacionais que adotam o português como língua oficial precisam ser duplicados, pois devem ser publicados numa e noutra ortografia; em que a certificação de proficiência de língua portuguesa não pode ser unificada; em que os materiais didáticos e os instrumentos lingüísticos, como dicionários e gramáticas, produzidos numa ortografia não servem para os países que adotam a outra e assim sucessivamente. Para acabar com essa situação esdrúxula, os países lusófonos assinaram, em 1990, em Lisboa, um acordo ortográfico. (Fiorim, 2008)
Este acordo era pra entrar em vigor em 1º de janeiro de 1994, após ser ratificação pelos países que tem a Língua Portuguesa como oficial. Até o momento somente o Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe ratificaram o acordo. “Assim, em princípio, ele está vigente. No entanto, se os outros países não o adotarem, frustra-se a idéia de unificação. Por isso, estamos em compasso de espera” (Idem).



Isabel Pires de Lima: deputada e ex-ministra da cultura de Portugal [foto editada: IOL-On-line]
O deputado europeu Vasco Graça Moura disse na audiência pública na Assembléia da República de Portugal que o “único objectivo real de toda a negociação do acordo... [ao suprimir na grafia as consoantes C e P - servirá para] homogeneizar integralmente a grafia portuguesa com a brasileira, desfigurando a escrita, a pronúncia e a língua que são nossas” ((Diário IOL, 07/4/08) grifo meu). Já a ex-ministra da cultura de Portugal Isabel Pires de Lima, num artigo publicado na edição em 02/6 no Diário de Notícias, periódico português, defendeu estender o prazo para 10 anos para a aplicação do Acordo, e neste intervalo propôs um “consenso diplomático” para a sua revisão, argumentando “razões técnico-linguisticas e culturais”, “razões político-diplomáticas e culturais” e “razões econômicas e culturais”. Em Cabo Verde, a doutora Ondina Ferreira, em artigo disponível na internet sob o título O Acordo Ortográfico do Nosso Desacordo? diz:


Por outro lado, no meio disto tudo, temos que reconhecer que a variante do Brasil é a que sai menos alterada deste novo Acordo ortográfico. Dizem eles que assim estão a internacionalizar e a fixar electronicamente (como eu escrevo e não ainda "eletronicamente" proposto no Acordo) a língua portuguesa. Isto para dizer também que o Brasil não é o dono da Língua portuguesa, como querem fazer crer alguns, por ser maior o número de falantes deles da Língua comum (Ferreira,
2008).
Ora, eis que apresento três versões contrárias ao acordo. Pelo menos, do jeito que está e no tempo que se apresenta. Antes de analisar caso-a-caso estas versões contrárias preciso fazer uma interrupção para apresentar uma tese sobre o que vem a ser a língua falada e sua propriedade social.

A língua é um instrumento que serve para que os homens e as mulheres, de qualquer idade ou sexo, opção sexual ou religião, de qualquer opção política ideológica ou qualquer outra razão dialética, possam se comunicar, fazendo-se entender e entender o outro, de tal forma que, ao fim e ao cabo, possam intervir no meio em que vivem buscando uma melhoria da qualidade de vida para todos e para cada um, com equidade social, respeito às diferenças e equilíbrio ambiental. Mas há muitos teóricos que confundem Língua e Gramática e tentam fazer acreditar que somente com o domínio da Gramática o sujeito é capaz de dominar a Língua. No Brasil, por exemplo, Pasquale Cipro Neto é um deles, assim como foi Napoleão Mendes de Almeida, falecido em 1998 (Bagno, 2007). Ora, uma criança aos 3 anos de idade começa a falar. E fala muito! E o tempo todo! E aos poucos vai dominando a Língua que é falada no meio em que vive. E o que significa dominar a língua que se fala? Significa compreender um conjunto de regras que o falante domina possibilitando-os a produzir frases ou seqüência de palavras compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma Língua (Possenti, 2006). O que se espera do falante é que ele seja compreendido e que seja capaz de compreender o outro, ou seja, de estabelecer uma comunicação compreensível.

Bechara (1992), um dos mais importantes gramáticos brasileiros, introduzindo a sua moderna gramática portuguesa (p. 23-24) diz que a língua é um “instrumento de comunicação cotidiana, que, sem preocupação artística, tem a seu dispor os múltiplos recursos lingüísticos de entoação e extralingüísticos da mímica, englobados na ‘situação’ em que se acham falante e ouvinte”. E sobre a Gramática ele diz que cabe à ela “registrar os fatos da língua geral ou padrão, estabelecendo os preceitos de como se fala e escreve bem...”. E diz mais: “o gramático não é um legislador do idioma...”. Com efeito! Não é a gramática que vai determinar como um povo tem que falar. Vamos abrir uma pausa para ilustrar esta propriedade: o filme americano Nell, de Michael Apted, protagonizados por Judie Foster e Liam Nieeson, retrata a vida uma jovem que viveu isolada da sociedade em meio a uma floresta longe da civilização urbana sem conhecer outra pessoa até a sua idade adulta desenvolvendo um dialeto próprio. Como foi que ela desenvolveu um dialeto próprio? Ora, vivendo ela e a mãe isoladas da civilização, e tendo sido sua mãe vítima de um sinistro que comprometeu a sua fala, o modo como a mãe se comunicava com a filha foi o modo internalizado por Nell para responder, comunicar, falar com a mãe, de tal maneira que se compreendiam perfeitamente. Logo, Nell sabia falar o seu dialeto com perfeição mesmo sem uma Gramática que a normatizasse.

Voltemos ao Acordo Ortográfico. A Gramática que normatiza a escrita não é determinante para normatizar a língua falada. É impossível escrever como se fala! Vejam: esta minha exclamação é finalizada com o sinal gráfico de exclamação. Mas é impossível àquele que a lê exclamar exatamente como eu a exclamei quando a expressei oralmente. Isso quer dizer que na escrita há uma tentativa de reproduzir a fala. E procuramos fazer isto de tal maneira que aproximamos a escrita do modo como falamos, e não o contrário. Então, se quero dizer cinqüenta –com o trema na vogal u; mas procurando me fazer entender que é o numeral que sucede o quarenta e nove e antecede o cinqüenta e um, se elimino o trema, o sentido continuará o mesmo, e isto não vai alterar a forma como eu falo.

O Brasil e os brasileiros não podem ter a arrogância de querer unificar o idioma falado nos países lusófonos [e nem é isto o que propõe o Acordo Ortográfico!] porque, nem mesmo no Brasil há uma unicidade da língua falada, embora a ortografia gramatical seja a mesma nos 26 Estados e no Distrito Federal que compõem a Federação. Permitam-me explicar um pouco melhor isto limitando o exemplo para não incorrer em injustiças aos muitos dialetos falados no território brasileiro: em todo o país escrevemos o numeral 8 da seguinte maneira: oito. E assim, simplesmente é falado em quase todo o país, mas em alguns (se não todos) Estados do Nordeste sofre uma variação em função da palatização e é falado otio ou oitio. E eu afirmo que só diz que o nordestino fala errado aquele que é impregnado de preconceito lingüístico.

Daí que o deputado português Graça Moura atribui ao Acordo uma desfiguração da língua portuguesa falada em Portugal e da pronúncia (ver citação anterior).Vou fazer um esboço para entender isto. Em Portugal e nos demais países africanos que falam a Língua Portuguesa serão suprimidas as consoantes mudas “C” e “P” ("acção"; "director"; óptmo) e o h inicial de palavras como húmido. Como disse a cabo-verdiana doutora Ferreira:
...às normas fixadas no Acordo e para vos ser sincera, custa-me ter de escrever, na minha variante da língua portuguesa, "ação" em vez de acção, "ator," em vez de actor, "ativo," em vez de activo, ou "ótimo," em vez de óptimo ainda que me justifiquem que nesta última na primeira grafia já lá está o acento tónico grafado e que abre a vogal sem necessidade da consoante "p" muda no caso. Acontece que toda a palavra carrega uma memória com ela. Uma memória etimológica, histórica que me explica e que me remete ao étimo latino, e à filiação do vocábulo.” (Ferreira, 2008)

a supressão destas consoantes, ao meu ver, e mesmo sem conhecer fundamentalmente o léxico e a sintaxe da língua falada em Portugal e nos demais países luso-africanos, pressupõe uma alteração no modo de falar. Nesses países, pelo que pude entender, as consoantes são identificadas foneticamente na palavra quando falada. Então o Acordo mesmo que unifique a ortografia, não unificaria o léxico, a sintaxe ou a semântica; e se desejando unificar também o léxico, a sintaxe ou a semântica, há, sem dúvida, uma interferência cultural no idioma desses povos, isso seria o mesmo que impor uma cultura hegemônica sobre as culturas locais.

Segundo o Diário português IOL-on line, o deputado Graça Moura afirmou que o acordo só beneficiaria o Brasil. Aí eu pergunto: beneficiaria em quê, cara pálida? Vamos analisar outra referência feita ao nobre deputado no Diário IOL. Diz a matéria: “O deputado critica, entre outros aspectos, o facto de o Governo não ter consultado a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) e a UEP (União de Editores Portugueses) quanto à ratificação do acordo” (Diário IOL, 2008). Estranho o deputado não ter questionado uma possível consulta ao povo português, quem de fato deveria opinar sobre a questão, e não somente a APEL e a UEP. Aqui identifico uma defesa que o deputado faz em benefício destas instituições. E é legítimo que ele o faça! Mas que o faça de maneira explicita, sem escamotear sua intenção, já que há um motivo muito mais importante a ser defendido, que é a forma legítima de como estas comunidades falam entre si. Ora, a própria APEL fez uma comparação entre as obras de grandes tiragens nas versões portuguesa e brasileira, concluído que não há diferenças lexicais e morfológicas e, portanto, muito pouco vai mudar. Eu não acho que seja muito pouco. As alterações nas normas brasileiras são mais numerosas, mas o percentual atingido é menor do nosso vocabulário. A reforma afetará 0,5% das palavras no Brasil, e 1,6% nos outros países.

Uma ruptura aconteceu em 1911 quando o governo português fez, à revelia do Brasil, a primeira normatização oficial da língua portuguesa. Desde então, os dois países tentam reaproximar suas grafias diminuindo aos poucos as diferenças entre elas, em especial nas regras de acentuação. Se aplicado efetivamente, o acordo elimina com cerca de 90% das divergências ainda existentes. O estabelecimento de uma grafia única está sendo considerado importante por razões políticas e comerciais. Possibilitaria a adoção do português como língua oficial de órgãos internacionais e reduziria os custos de tradução de livros do Brasil para outros países. Aqui, talvez, esteja o cerne da questão e justifica a preocupação do deputado Graça Moura.

Quanto às preocupações da ex-ministra da cultura de Portugal Isabel Pires de Lima levando-a a propor um “consenso diplomático” para a revisão do Acordo, argumentando “forte desrespeito pela dimensão patrimonial da língua, nomeadamente a sua dimensão histórica etimológica” (Lima, 2008 – disponível na internet) faz sentido. O que não faz sentido nas palavras da deputada portuguesa é a alegação da “Lei de Bases do Património Cultural como um bem cultural, que, portanto, importa preservar e salvaguardar” (idem). Aliás, a própria Lei à qual ela se refere não considera as variações naturais que a língua sofre ao longo das idades. A língua é dinâmica e, portanto, vai se alterando com o passar dos tempos. Basta, para isto, recorrer aos escritos dos séculos anteriores e compará-los aos atuais e será possível constatar que o atual idioma português não é o mesmo de alguns anos antes.

No final do artigo da ex-ministra, ela chama a atenção para as dificuldades que as editoras portuguesas enfrentarão para conquistar “o mercado do livro no espaço lusófono, e muito especialmente nos PALOP” (idem) Ah! Sim. Agora entendemos a preocupação da ex-ministra. Aqui ela deixa claro qual é realmente a sua preocupação. Assim como o deputado Graça Moura, ela está defendendo (e é justo que assim o faça, repito!) os interesses das editoras portuguesas. Agora, convenhamos: porque a sua preocupação em conquistar o mercado do livro nos PALOP? Seria porque a concorrência levaria mais leitura, mais informação e melhor formação a preços justos para os países falantes da língua portuguesa? Seria porque mais informados, mais sábios, os ex-colônias se emancipariam de fato e, portanto, conquistariam mais autonomia diante de uma economia planetária? Os países luso-africanos não se beneficiariam com uma política editorial mais justa, menos escorchante? Ou será uma tentativa de perpetuação de manter os países luso-africanos dependentes de Portugal?

Voltemo-nos agora para Cabo Verde e para as preocupações da doutora Ferreira. Diz a doutora que a variante brasileira da língua portuguesa é a que sai “menos alterada” e que o “Brasil não é o dono da Língua portuguesa”. Tenho que concordar com a doutora que o Brasil e os brasileiros não são donos da língua. Aliás, quem é? Seria Portugal, como disse o deputado Graça Moura? Estou mais para concordar com o gramático brasileiro Celso Pedro Luft (2000) que disse que “não há propriedade privada no mundo das palavras. Elas são de todos, propriedade pública. Mais exatamente: as palavras são do povo, ‘vivem na boca do povo’, soma de todas as camadas sócio-econômico-culturais” (p. 16). Quanto às alterações, no Brasil ela é mais profunda na forma escrita. Falada, as alterações são ínfimas, modestas demais em relação aos outros países. Quero, entretanto, me deter num parágrafo do artigo em questão. Diz o artigo:
Retomando a questão da nova escrita, ou das alterações propostas, seguindo as bases do Acordo Ortográfico - são cerca de 1400 palavras, mas de uso frequente - poderá acontecer que com o tempo e a reabituação - alguém dizia que o pai dele escrevia Farmácia com "Ph" e que ele prendeu já com "F" - lá está, aprendeu, não foi uma alteração nos seus hábitos de escrita - possamos todos adoptar ou "adotar"? o novo modelo de escrita em toda a acepção (em que a vogal "e" é aberta e bem tonificada) ou aceção? (como da variante do Brasil que geralmente emudece a vogal "e"). O futuro ditará...

Ora, senhoras e senhores; aqui temos um clássico exemplo de que a gramática é que se atualiza com a variação da língua. A língua não tem que ser alterada pela gramática. O modelo europeu dos séculos XIX e XX determinava o uso do “Ph” para escrever palavras como farmácia. Mas o falante brasileiro acabou por abrasileirar também a forma de escrever aproximando a escrita da fala, como já abordei em parágrafo anterior. Então, o que a doutora chama de reabituação, ou de adotar uma nova forma de falar as cerca de 1400 palavras a serem alteradas com o Acordo, ao meu ver, só se altera na escrita quando se alterar, de fato, no modo de falar. Talvez, por isso somente, considero que o Acordo não seja exeqüível. De nada adianta dizer que todos vamos escrever ótimo, quando o falante cabo-verdiano, português, angolano, são-tomense, moçambicano, guineano, timorense continuarem a falar óptimo –pronunciando foneticamente o “P”.

Quanto às vogais serem abertas ou fechadas, isso no Brasil é muito comum. Um carioca (Rio de Janeiro) fala c[ô]légio, enquanto um nordestino (cearense, por exemplo) diz c[ó]légio. Mas ambos escrevem colégio. E no caso do exemplo dado pela doutora, se acepção se refere a significação, sentido; um paulista (São Paulo) diria ac[ê]pção (notem que neste caso o brasileiro utiliza o “P” tanto para escrever quanto para falar) com a vogal fechada, enquanto um paraibano (Paraíba) diria ac[é]pção com a vogal aberta, mas todos os brasileiros escrevem acepção. Então a discussão não deve se pautar na questão das vogais serem abertas ou fechadas, mas deve convergir para as palavras que serão alteradas na grafia e que provavelmente irão alterar o modo de falar das pessoas. Então a questão política é: qual o impacto que este Acordo Ortográfico causa na língua falada por uma nação? Por favor, esqueçam a questão quantitativo populacional e nos detenhamos na questão qualitativa cultural. Se no Brasil em nada altera no modo do brasileiro falar, por que em Angola os angolanos têm de suprimir as consoantes de suas falas? E não me venham com o argumento de que a alteração só se dá na ortografia, pois alterando a ortografia, certamente altera-se o modo de falar, pois há uma tendência natural das pessoas falar como se lê. Daí que ler ótimo, certamente falarão ótimo, sem o “P” que tradicionalmente usam ao falar. Parece que estou sendo contraditório ao dizer isto, já que anteriormente eu afirmei que a escrita é que tenta reproduzir a fala e não o contrário, não é mesmo? Mas, qual o brasileiro que vê escrito óptimo e lê ótimo? Se a escrita é que tenta reproduzir a fala, quem escreveu óptimo queria ser interpretado assim. Se isto vale para os brasileiros, para os povos português e luso-africanos o recíproca é verossímil. Passando a escrever ótimo, diretor, fato querem que esses povos falem ótimo, diretor e fato. E isso é provocar imperativamente uma violação em suas culturas.

Para finalizar, reconhecendo estar inconcluso este diálogo, eu não vejo sentido no Acordo senão o de proporcionar aos países luso-africanos uma maior oportunidade de acesso aos livros e revistas produzidos pelo Brasil que, por sua capacidade de produção, os fazem com valores mais justos e isso possibilitaria uma democratização na educação para todos e todas. Esta seria a grande preocupação de Portugal -perder esta fatia de mercado? Sendo ou não este o motivo da discórdia, o fato é que o Acordo já está valendo para os três países que o ratificaram: Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. E vale capenga, já que ainda há indefinições quanto ao hífen segundo Godofredo de Oliveira Neto, presidente do conselho diretor do Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP), órgão da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). O fato é que seria muito interessante que todos os países que tem a Língua Portuguesa como oficial pudessem utilizar uma ortografia comum respeitando o modo de falar de cada um. E seria interessante porque, ao meu ver, os países lusófonos, sobretudo os mais pobres, poderiam se beneficiar com um volume maior de informações literárias e técnico-científicas, proporcionando a todos e a todas acesso ao saber epistemológico, se não gratuitos, a preços mais justos.

Referências Bibliográficas:

Bagno, Marcos. Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz. 49a. ed. São Paulo. Loyola, 2007

Bechara, Evanildo. Moderna gramática brasileira: cursos de 1o. e 2o. graus. 34a. ed. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1992.

Ferreira, Ondina. O ACORDO ORTOGRÁFICO DO NOSSO DESACORDO? Cabo Verde: Expresso das Ilhas, 2008. Disponível na Internet no endereço http://www.expressodasilhas.cv/noticias/detail/id/3294/ acessado em 23/6/08 às15:17h.

IOL-On Line. Acordo deve ser estudado e depois rejeitado: Lisboa: IOL Portugal On-line, 2008. Disponível na internet no endereço: http://diario.iol.pt/sociedade/acordo-ortografico-vasco-graca-moura-carlos-reis-portugues-lingua/937190-4071.html: acessado em 25/6/08 às 16:25h.

Lima, Isabel Pires de. EM FAVOR DA REVISÃO DO ACORDO ORTOGRÁFICO: TRÊS ORDENS DE RAZÕES 'CULTURAIS’: Lisboa: Diário de Notícias, 2008. Disponível na internet no endereço http://dn.sapo.pt/2008/06/02/artes/em_favor_revisao_acordo_ortografico_.html: acessado em 25/6/08 às 14:45h.

Possenti, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 16a. ed. Campinas, SP Mercado de Letras, 2006.

Luft, Celso Pedro. Língua e Liberdade. 3a. ed. São Paulo. Ática, 1996.
Fiorim, José Luiz. E Agora Portugal?: publicado na revista LÍNGUA PORTUGUESA, fevereiro de 2008. Disponível na internet no endereço www.marcosbagno.com.br/for_fiorin.htm acessado em 23/6/08; 14:28h.




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Dialogando acerca da Pesquisa e Prática da Educação
por Rildo Ferreira


I – Introdução
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Este texto tem por finalidade abrir um diálogo acerca da disciplina Pesquisa e Prática da Educação numa tentativa de identificar sua importância na formação acadêmica, levando em consideração os sujeitos que dela se utilizam, quer seja na mediação na práxis pedagógica, quer seja beneficiário dela.

Considerando o período da aplicação do nível II da disciplina, vou fazer um resgate dos períodos que antecedem este momento fazendo uma análise histórica para melhor compreensão da discussão acerca do assunto, aqui sim, tentando identificar as falhas no processo de formação acadêmica para, por fim, fazer alguns apontamentos que, ao meu ver, alcançariam melhores resultados sob o ponto de vista de quem aprende.

É preciso esclarecer que este trabalho não se ateve às opiniões de seu autor, mas procurou saber a opinião dos colegas de turma [e de outras turmas] a fim de fundamentar a análise pluralizando as propriedades críticas. Para que isto pudesse ocorrer, redigi um questionário e o distribuí a 62 colegas universitários, sendo em duas turmas no Campus Méier e uma turma no Campus Queimados da Universidade Estácio de Sá.

Vamos ao diálogo.


II - Os primeiros períodos na Universidade
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Chegar à universidade é um sonho que todo homem e toda mulher acalenta desde a sua juventude. Até bem pouco tempo este sonho era um privilégio de poucos. Estes já privilegiados por sua boa condição econômica. Grande parte dos que alcançavam a universidade dispunham de todo o tempo necessário para um aprendizado sistêmico, e assim, mesmo depois da conclusão do ensino médio, passavam um bom período em cursos pré-vestibulares intensivos que os distanciavam em vantagem dos que necessitavam trabalhar e pouco dispunham para o estudo.

Não quero discutir o mérito da questão, mas preciso dizer que em boa hora, numa tentativa de melhorar o nível de escolaridade dos brasileiros e brasileiras, o governo federal lança um programa [PROUNI – PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS] para garantir bolsas de estudos integral e parcial, estas de 50% (cinqüenta por cento) do valor das mensalidades, para estudantes que concluíam o ensino médio nas escolas públicas levando-os ao ensino superior. Eis que me encontro beneficiário de bolsa integral deste programa.

Chegar à universidade foi impactante. Ora, eu esperava uma universidade viva, com professores e alunos produzindo conhecimento. Eu também esperava professores que adotassem uma postura didática que partisse da realidade dos alunos para se alcançar o conhecimento científico. O discurso era este! Mas, como disseram Barreto e Barreto (in GADOTTI e ROMÃO, 2007)
  • ...90 % dos educadores brasileiros, provavelmente por influência de Paulo Freire, dizem em seu discurso que o educando é sujeito no processo educacional. E no entanto quase todos que dizem isto têm uma prática educativa na qual tratam os educandos como objetos no processo (p. 82).
Ocorre então o primeiro choque cultural, como disseram alguns colegas em suas respostas ao questionário. Ora, vindos do ensino médio, de escolas públicas ou privadas, do meio de um público cuja língua falada é a mais popular possível, os professores, em sua maioria, adotam uma linguagem técnico-científica sem explicar o seu significado.

Bem, diriam uns, mas o aluno é universitário e nesta fase cabe à ele ser um pesquisador constante. Aí eu insisto na questão já abordada em parágrafo anterior. Quem está na universidade privada e estudando à noite é um operário que tem o seu dia ocupado com o labor. É verdade que ele precisa encontrar tempo para o estudo e dedicar-se, em parte, a pesquisas de caráter epistemológico. Mas daí o professor universitário procurar manter o distanciamento do aluno universitário é uma atitude que denota repugnância pela práxis educativa que ele adota no discurso. Este foi outro impacto na cultura acadêmica.

Lembro-me dos primeiros trabalhos produzidos a pedido dos professores. Quando foi pedido um fichamento sobre determinado capítulo de um livro, e sem as explicações pertinentes do que vem a ser um fichamento, eis que o resultado foi uma mescla de fichamento comentado, resenha e resumo. Não era possível caracterizar entre um e os outros modelos de trabalho acadêmico. Com efeito, não nos era possível fazer um fichamento como devia ser feito haja vista que não era do nosso domínio tal conhecimento. Talvez por isso uma colega ao responder o questionário sobre a importância da Pesquisa e Prática da Educação na sua formação ela diz “É uma disciplina de vital importância no currículo, pois nos ensina e nos orienta como confeccionar nossos trabalhos acadêmicos”. Esta resposta limitadíssima para conceituar a propriedade da disciplina tem uma razão de ser, já que no desenvolvimento dela é preciso conhecer como descrever uma pesquisa realizada, logo, o aluno tem que aprender a fazer fichamento, resumo, resenha e artigos. Mas a disciplina não se limita a ensinar como fazer estes trabalhos.

Dos 62 questionários distribuídos apenas 26 voltaram. Destes, somente 4 responderam que pensaram em desistir. A superação, segundo eles, posso resumir assim, se deu por conta da participação dos próprios colegas de turma que os ajudaram em novos conhecimentos. Um deles disse ter sentido brutal dificuldade em produzir os trabalhos acadêmicos. Os primeiros foram manuscritos. Ele não possuía e nem sabia utilizar um computador. Ora, mesmo com a universidade oferecendo laboratórios de informática para pesquisa e produção de material acadêmico, ele foi um dos que não utilizou deste recurso no primeiro período. E porquê? Porque não lhe garantiram um ensinamento da utilização dos recursos disponíveis. Ele então se sentiu inferiorizado em relação aos outros que já dominavam esta tecnologia. A superação só se deu quando foi capaz de expressar este sentimento a um dos colegas da turma. Este passou a ajudá-lo na utilização do laboratório de informática e das muitas ferramentas que esta tecnologia proporciona aos seus usuários.

Mas isso não foi suficiente. O trabalho está pronto, mas e agora? Onde imprimir o produto acadêmico? Eis que a instituição apresenta duas fotocopiadoras, uma delas imprime os trabalhos acadêmicos, mas para isto, o pretendente deve dispor de recursos financeiros que garanta o pagamento de R$ 0,50 (cinqüenta centavos) por folha impressa. Então o aluno descobre que não pode contextualizar, teorizar, aprofundar a discussão do seu trabalho acadêmico porque pode não dispor de recursos para apresentá-lo ao professor. Então ele precisa economizar na produção acadêmica para economizar recursos.

Então os que responderam ao questionário viram, e eu os acompanho, a necessidade desta disciplina a partir do primeiro período tal a sua importância. Não só por sua propriedade de formar a todos e a cada um em pesquisador produtor de conhecimentos, mas também por sua praticidade na formatação do universitário para encarar com mais disposição o desafio acadêmico.

Entre os meus entrevistados teve quem pedisse mais liberdade para abordar os temas trabalhados na disciplina. Eu não compartilho deste princípio. O maior desafio é apresentar resultados com base naquilo que foi pedido. É claro que se parto de algo que me fascina o resultado pode ser brilhante, fundamentado, com bastante clareza e objetividade. Mas desenvolver a capacidade de trabalhar com aquilo que não é do nosso conhecimento é exatamente produzir um novo conhecimento. Aquilo que me fascina eu, de algum modo, já conheço. Aquilo que até então não me atraía eu deixava de lado, logo o desconheço. A academia deve proporcionar a todos e a todas conhecer o desconhecido. Por isso considero que o desenvolvimento da disciplina deve mesclar entre temas pré-definidos e temas livres para a pesquisa do aluno. Aqui eu não desprezo os saberes do educando. Aliás, eles precisam ser trabalhados para que este saber seja um saber cientificizado. Mas um modo de conhecer o desconhecido não elimina o outro.

Paulo Freire (1921-1997) sempre demonstrou acreditar na educação com a esperança que jamais abandonou como uma pedagogia voltada para todos e todas que ousam ensinar-aprendendo. Sempre afirmou que ensinar exige uma rigorosidade metódica, não a prática transferidora de conhecimentos, mas com uma didática que permite que os educandos vão se transformando em sujeitos da construção do saber ensinado, atribuindo méritos ao educador/educadora que ensina o pensar certo. Isto posto, diz, ensinar exige pesquisa. “Pesquisar para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”, e pesquisar parte do pressuposto de uma curiosidade inocente, do senso comum que propõe uma superação o que implica uma rigorosidade metódica, transitando da curiosidade ingênua para uma curiosidade epistemológica. Logo, faz-se mister o respeito aos saberes do educando, “saberes construídos na prática comunitária” (Freire, 2005). E este ensinar a pensar certo, a absorver para aplicar a rigorosidade metódica são propriedades da Prática e Pesquisa da Educação. Sem esta disciplina, nossa formação acadêmica estaria comprometida com uma lacuna vazada no currículo.

III – Conclusão
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Para efeitos de conclusão desse diálogo, preciso reconhecer que alguns colegas têm razão para reclamar a presença da disciplina a partir do primeiro período com a adoção de um didática apropriada para preparar o intróito ao ensino acadêmico. Penso ainda que, não somente esta disciplina, mas a Informática Aplicada à Educação assim como Português I. Ora, a Prática e Pesquisa da Educação no primeiro período teria como elemento básico ensinar o que vem a ser fichamento, resumo, resenha, artigo e outros trabalhos acadêmicos, isso possibilitaria que os níveis subseqüentes passassem a adotar uma prática de pesquisa propriamente dita. No caso das outras disciplinas como Informática Aplicada à Educação, esta objetivando preparar aqueles que ainda não dominam os novos recursos tecnológicos, para um melhor aproveitamento da produção acadêmica. Do mesmo modo o Português I. Ora, no primeiro período deparamos com uma cultura distante da nossa realidade. Como disseram alguns dos meus entrevistados, muitos termos utilizados não fazem parte do vocabulário dos alunos do ensino médio, nem da prática diária. Logo, ao ouvi-los, ficaram perplexos e desorientados. Então, palavras como dialética, paradigma, epistemologia, etimologia, ética, entre outras, seriam colocados à discussão para o aprendizado da aplicação de cada uma delas no meio científico.

Sem estas questões preparatórias, o aluno pode até aprender, e vai! Mas funcionará como um carro cujo motor de arranque está com defeito. Só "pega no tranco". Daí ocorre um desnível. Uns se adaptam mais rapidamente que outros e, estando na mesma turma sente-se prejudicado por aqueles que não se adaptaram ainda. Estes, por sua vez, se sentem inferiorizados e distanciados da realidade acadêmica.


IV – Referências Bibliográficas
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GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José E. (Orgs). Educação de Jovens e Adultos: teoria, prática e proposta – 9. ed. – São Paulo : Cortez : Instituto Paulo Freire, 2007. – (Guia da escola cidadã ; v. 5)

FREIRE. Paulo. Pedagogia da Autonomia [saberes necessários à prática do educando] Rio de Janeiro. DP&A, 2005.


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quarta-feira, 25 de junho de 2008

Educador, educadora, você escolheu intervir neste mundo complexo
por Rildo Ferreira (ferrera13@hotmail.com)

Caríssimo educador (educadora).
Soube que acaba de ingressar na docência. Soube, também, de sua felicidade ao conhecer a turma com a qual trabalhará nos próximos meses com meninos e meninas do primeiro ano do ensino fundamental. Eu também fiquei feliz por você, assim como pelas crianças, conhecendo o seu caráter e sua afeição pelo inusitado, pelo diferente, bem como o imenso carinho que nutre pelas crianças.

Felizmente educador (educadora), você escolheu intervir neste mundo complexo, cheio de preconceitos, de desigualdades, de injustiças; de ausência de solidariedade e de ausência de respeito a todos e a cada um. Dirijo-me à você reconhecendo sua enorme capacidade em promover uma educação voltada para a emancipação do Ser. Talvez, por isto, me sinto no direito de rediscutir sobre as crianças como seres autônomos, cidadãs. Sujeitos sociais e históricos, marcado pelas contradições das sociedades em que estão inseridas (kraemer, 2004: p. 54). Como educadores, precisamos reconhecer que as crianças são capazes de imaginar, criar, produzir cultura. Entendê-las, é ver o mundo a partir do ponto de vista delas (idem).

Veja caríssimo: lidar com elas não é difícil. Se as respeitamos enquanto sujeitos históricos sem abrir mão do nosso papel de adultos e de educadores, estaremos contribuindo significativamente na sua formação. A sociedade moderna troca afetividade por coisas. “se outrora a criança era vista como um ser marcado pela ingenuidade, ignorância e indolência, cujo desenvolvimento dependia estritamente do controle adulto, através da disciplina e da moralização, hoje ela assume o lugar de protagonista, alvo privilegiado da sociedade do consumo” (Salgado, Eu tenho a força: os super heróis mirins nos desenhos animados e na vida [p. 79] in SOUZA, 2003). É crescente o distanciamento entre pais e filhos. Mães que se ocupam com as telenovelas; pais que não permitem o interromper o jogo de futebol e as crianças empurradas para os vídeos-games para se ocuparem com alguma coisa.

Educar as crianças é dialogar com elas. É preciso conhecê-las a ponto de dosar as tarefas que lhes atribuímos. Dialogar não significa abrir mão da autoridade, mas não se impor exigindo demais quando deveríamos poupa-las (Kraemer, 2004: p. 59). As crianças têm sido confinadas em seus minúsculos espaços e, em muitos casos, levadas a assumirem papéis que são próprios dos adultos. Ora, as crianças querem brincar, se relacionar com as outras, experimentar. E nessa relação da inocência vai internalizando cultura, modificando-a e produzindo outras. São curiosas por excelência. Cabe-nos, portanto, dialogar levando-as da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica (Freire, 1999: p. 45). Assisti ao filme Abril Despedaçado que apresentava um personagem que não sabia ler, mas diante das ilustrações de um livro, imaginava as histórias possíveis e as narrava para si mesmo. Esta capacidade inata das crianças precisa ser estimulada para a promoção de uma educação para a cidadania, para uma cultura de paz.

Quando elas nos chegam à escola, trazem consigo valores e saberes que precisam ser explorados e socializados com as demais crianças da classe. Nossa tarefa não é fácil! O salário é obsceno e as condições de ensino são precárias. Mesmo assim, toda a sociedade reconhece e deposita na educação a possibilidade de um futuro diferente do que hoje é. Quando escolheu ser educador (professor ou professora), você fez uma opção: a de educar para transformar este modelo perverso que destrói sonhos, corrompe a infância e compromete o futuro.

Estou na torcida educador: e cheio de esperança de que um mundo justo, solidário e fraterno ainda é possível. Boa sorte e sucesso nesta árdua, mas gratificante tarefa.

Seu amigo,
Rildo Ferreira


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia [saberes necessários à prática do educando] Rio de Janeiro. DP&A, 2005.

JOBIM E SOUZA, Solange. Educação@pós-modernidade. Ficções científicas & Crônicas do cotidiano. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. v. 1. 130 p.

KRAMER, S. Educar para a cidade-escola. Revista de Educação CEAP, v. 44, p. 53-63, 2004.


Abril Despedaçado: Filme de Walter SALLES: adaptação para o cinema foi realizada por Walter Salles, Sérgio Machado e Karim Aïnouz, produzido por Arthur Cohn.

sábado, 14 de junho de 2008

BINGO_10

adaptação do jogo Bingo para o aprendizado da adição e subtração dos números inteiros positivos e números inteiros negativos

Por Rildo Ferreira


Introdução

Este jogo é uma adaptação do tradicional bingo, muito comum nas rodas de amigos e entre familiares. O jogo tradicional apresenta um conjunto de cartelas com números inteiros positivos a começar pelo 1 até o 00. Ganha a rodada quem preencher toda a cartela segundo os números sorteados.

O BINGO_10 limitou os números de 0 a 9, mas as cartelas se apresentam com números de –9 a 9, ou seja, vamos jogar com números inteiros positivos e números inteiros negativos.

Nesta adaptação, quando um número for sorteado, marca-se na cartela todos os números (conforme o sorteado) negativos e positivos. Para ganhar a rodada, o jogador tem que fazer exatos 10 pontos na cartela. A competição pode ser com qualquer valor final, mas estamos propondo um total de 100 pontos para o jogo, culminando com 10 rodadas consecutivas.


Objetivo Pedagógico

i- Estimular o raciocínio lógico;
ii- Provocar o aluno no aprendizado da soma e da subtração com números inteiros positivos e números inteiros negativos.

Conceito Matemático

i- Introdução do ensino dos números inteiros negativos e números inteiros positivos;
ii- Adição e subtração dos números inteiros negativos e números inteiros positivos


Série Proposta

A partir do 6o. ano (série).


Objetivo do BINGO_10

O objetivo do jogo é chegar aos 100 pontos. Para isso serão divididos em 10 rodadas mínimas, pressupondo que em cada rodada haja um ganhador. Em cada rodada o jogador deve fazer 10 pontos na sua cartela.


Metodologia do BINGO_10

As cartelas serão enumeradas de –9 a 9 {-9, -8, -7, -6, -5, -4, -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9}. Ao ser sorteado um número o jogador marca todos os números correspondentes ao sorteado, os negativos e os positivos. Assim se o número sorteado for o 3, por exemplo, na cartela apresentar duas vezes o número –3 e uma vez o número 3, o jogador marcará nos três quadros respectivos. Como resultado aritmético, o jogador fica com 3 pontos negativos, já que –3 + (-3) = -6 e –6 + 3 = -3.

O jogador que alcançar os 10 pontos binga! Numa mesma rodada, é possível que haja mais de um ganhador. O jogo termina quando um dos jogadores alcançar os 100 pontos.


Material Didático Utilizado

i- 4 folhas Papel Cartão
ii- 10 Bolas de Ping-Pong
iii- 1 vidro de Esmalte colorido
iv- 3 vidros de Esmalte incolor
v - 1 Pincel Piloto preto
vi- 1 Pincel Piloto azul
vii- Régua
viii- TNT
ix- Linha
x- Agulha


Aternativa utilizando material reciclável.

Para fazer o embaralhador dos números, utilizar uma garrafa pet cortada próxima do gargalo. Decora-la com gravuras feitas com outros materiais recicláveis ou com emborrachado.

Para fazer os números, utilizar as tampinhas de garrafas pet. Preferencialmente todas da mesma cor ou pinta-las, utilizando um esmalte (ou tinta) de cor clara, e um esmalte de cor escura para fazer os números.

Pode-se estimular que cada jogador tenha igualmente 10 tampinhas coloridas para efetuar as somas/subtrações.


Preparo do material

Recorte uma folha do papel cartão em 16 pedaços iguais.

Em cada pedaço, faça uma margem com o Pincel Piloto Azul e simetricamente, 5 linhas na vertical e três na horizontal, de tal modo que cada cartela passe a conter 15 quadrados.

A numeração de cada quadrado pode ser feita aleatoriamente desde que na soma total, entre números inteiros positivos e números inteiros negativos, tenha pelo menos 10 pontos.


Exemplo de uma cartela do Bingo_10

Pode-se fazer quantas cartelas desejar.

Em cada bolinha de ping-pong, utilize o esmalte colorido para enumera-la. Deve-se fazer, preferencialmente, duas marcações em cada bola, de tal modo que estejam diametralmente opostas.

Espere o esmalte colorido secar e passe em toda a bolinha o esmalte incolor.

Com o TNT e o auxílio da linha e da agulha faça uma sacola para servir de embaralhamento das bolinhas para o sorteio.

Para a marcação na cartela, os alunos poderão utilizar tampinhas de garrafas pet, bolinhas de papel ou milho.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Etnomatemática: Matemática Inclusiva?
por Rildo Ferreira

INTRODUÇÃO

Este texto se propõe a dialogar sobre Etnomatemática para compreender seu conceito filosófico e, também, compreender onde se aplica o ensinamento dela. Quando Ubiratan D’Ambrósio sugeriu a termologia para justificar que existem muitas maneiras de aprender, ensinar e entender Matemática, buscou codificar um conjunto de medidas que tornam o ensino mais próximo da realidade de quem aprende Matemática.

Ora, num estudo organizado por Schwartzman (2005) ele mostrou que muitos passam pela escola sem nada aprender e parte significativa dos que se matriculam no ensino básico não levam o estudo ao fim. A evasão e a repetência são produtos da má qualidade da educação cujas raízes são identificadas na formação do educador. Com efeito, aquele que ensina tende a fazê-lo seguindo o modelo de como aprendeu. Dessa forma, reproduz um ensinamento que parte de um conceito eurocêntrico onde equivale a sentença ciência e ocidente é a única verdade aceitável.

Partindo desse princípio, a matemática tem sido utilizada para a promoção do apartheid social onde poucos privilegiados dominam este saber para dominar a grande maioria que se mantém distante da escola por não ver sentido naquilo que é ensinado. Na proposta de D’Ambrósio a Etnomatemática busca a superação desta barreira emblemática para uma educação inclusiva, onde os saberes já constituídos na prática comunitária (de vida) façam parte do processo de aprender-aprender a aprender matemática. Esta é a proposta: dialogar sobre a Etnomatemática como Matemática Inclusiva, que agrega outros saberes aos saberes planetariamente aceitos.

Fundamentação Teórica

Para começar a fundamentar nosso diálogo, vamos analisar uma matéria publicada no Globo on-line em 13/03/2008 por Leonardo Guandeline cujo título indicava que 71% dos alunos matriculados na rede estadual de ensino em São Paulo terminam o segundo grau sem saber matemática. Dizia a matéria:

  • ... Os números constam do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) 2007, divulgado nesta quinta-feira pela Secretaria Estadual de Educação. De acordo com a avaliação, apenas 3,7% dos alunos do 3º e último ano do Ensino Médio tiveram desempenho considerado adequado. A maioria absoluta, 71%, tem nível abaixo do básico. Outros 24,7% têm nível de aprendizado considerado básico e apenas 0,6% avançado (O Globo on-line)

Ora, o pesquisador Simon Schwartzman (2005) organiza um estudo sobre Os Desafios da Educação no Brasil e argumenta que maioria dos alunos passa pela escola sem nada aprender e que o não aprender é fator determinante da repetência e da evasão escolar. Libâneo (1985) questiona o ensino tradicional e propõe a Pedagogia Crítica dos Conteúdos lembrando que o processo educativo tem raízes nas contradições, nas lutas sociais, e que a prática educativa é ação e resultado do processo de formação dos sujeitos para que se tornem adultos, no qual adquirem capacidades e qualidades humanas que lhes permitam superar as contradições num determinado contexto social. Acontece, porém, que o ensino tradicional é verticalizado e reprodutor de uma cultura eurocêntrica com vistas a manter as desigualdades na sociedade. Neste paradigma o sujeito só supera as condições de inferioridade quando consegue aniquilar sua cultura e internalizar a cultura que lhe é imposta verticalmente.

Sobre este paradigma perverso de aniquilação das culturas pela falsa educação, que só admite uma matemática rigorosa e precisa, que identifica racionalidade com o domínio da matemática, D’Ambrósio (2005) argumenta que

  • ...Na educação, a realidade é substituída por uma situação falsa, idealizada e desenhada para satisfazer os objetivos do dominador. A experiência educacional falseia situações com objetivo de subordinar... O aluno tem suas raízes culturais, que é parte de sua identidade, eliminadas no decorrer de uma experiência educacional conduzida com o objetivo de subordinação. Essa eliminação produz o socialmente excluído... (p. 75)

A mesma matéria anteriormente citada ainda traz outro dado importante que afeta alunos do ensino fundamental. Diz a matéria que “o desempenho dos estudantes em matemática piora a partir da 4ª série (44,3% deles abaixo do básico). O número chega a 54% na 6ª e 50% na 8ª série”. Alguns estudos mostraram que o cerne da questão está na forma de como o ensino da matemática é levado aos alunos. Cendales e Mariño (2006) tratando do processo de aprendizagem na Pedagogia dialógica dizem que se os educadores querem que a aprendizagem seja viável devem levar em conta a proximidade dos seus objetivos e o educando, ou “De outro modo, estaremos estabelecendo metas inalcançáveis, que certamente o educando até memorizará, mas depois esquecerá para sempre” (p.55).

Ora, os dados que vimos anteriormente são de 2007. Não é de um tempo distante. Muito embora eles se refiram ao desempenho dos alunos de somente um Estado da Federação, é bem provável que a realidade nacional não seja muito diferente disto. É verdade que será preciso um estudo bastante aprofundado para se saber quais são os motivos desses índices bastante preocupantes. Em se tratando da Matemática, os dados mostram que dois terços estão sendo considerados abaixo do nível básico de aprendizagem. Esta matéria jornalística me levou a conversar com 22 alunos do Instituto Evangélico de Austin¹ sobre o ensino da Disciplina. Apenas uma aluna disse ter bom desempenho na matéria, muito embora, assim como os outros alunos, todos disseram detestar Matemática.

Um pouco mais de conversa e consegui extrair deles que o que estavam estudando não tinha utilidade prática e que não viam no que estudavam uma necessidade para o que desejavam no futuro. Os alunos da 7a. e da 8a. séries do Instituto Evangélico de Austin, Escola do Ensino Fundamental, localizada na Rua Bela Vista, sem número, em Austin, distrito da Cidade de Nova Iguaçu, apresentaram a prova de Matemática e a média geral da turma acompanhou (em tese) os resultados das Escolas Públicas de São Paulo (ver gráfico). Dos 22 alunos na nossa entrevista, apenas quatro conseguiram nota igual ou superior a 7. Seis tiveram notas entre 5 e 7 pontos, e os demais, notas inferiores a 5 pontos. Prova² aplicada pouco mais de um mês depois da publicação da matéria no Globo on-line.




Gráfico: percentuais segundo total de pontos obtidos na prova de Matemática por aluno pesquisado.

Naturalmente que esta entrevista realizada com estes alunos não é suficiente para consolidar uma teoria. Seria preciso muito mais que um encontro, vinte e duas provas com notas variadas, sendo a melhor delas 7,5 (sete e meio) e a pior delas, 1,5 (um e meio), uma delas constante como conteúdo de estudo, para se estabelecer uma vertente contribuinte para o baixo nível de desempenho dos alunos no aprendizado do ensino da Matemática. Contudo, muitos outros estudos têm apontado um ensino distante da realidade dos alunos e muitos teóricos renomados trazem à luz de uma pedagogia crítica dos conteúdos, como propõe Libâneo (1985); D’Ambrósio (1996) Cendales y Mariño (2006), Gadotti e Romão (2007), entre outros, a necessidade de primeiro conhecer o saber dos alunos para adequar o ensino às necessidades segundo a realidade de todos e de cada um em particular.

Este modelo tradicional do ensino da matemática tem uma razão de ser. Esta razão é apontada por D’Ambrósio (1996) pode ser entendida como uma forma de manutenção das desigualdades que teve início com os conquistadores, mantendo os conquistados num nível de inferioridade e que

  • Claro que ao falar em conquista estamos admitindo um conquistador e um conquistado. O conquistador não pode deixar o conquistado se manifestar. A estratégia fundamental no processo de conquista, de um indivíduo, grupo ou cultura [dominador] é manter o outro indivíduo, grupo ou cultura [dominado] inferiorizado. Uma forma, muito eficaz, de manter um indivíduo, grupo ou cultura inferiorizado é enfraquecer as raízes que dão força à cultura, removendo os vínculos históricos e a historicidade do dominado. Essa é a estratégia mais eficiente para efetivar a conquista (D’Ambrósio, 2000. disponível na internet)

Os pesquisadores colombianos Cendales e Mariño (2006) também argumentam sobre o papel da educação como parte de uma engrenagem social. Para eles só existirão mudanças qualitativas na sociedade quando houver mudanças igualmente qualitativas na educação, mas que não existe mudança na educação sem mudanças na sociedade e, se há diferença na sociedade, a educação também se apresenta com diferentes objetivos, diferentes interesses (p. 13). Neste caso, o educador é parte importantíssima nesta relação de forças, haja vista que

  • Se nós, educadores, admitimos que temos um poder (próprio ou delegado), o poder que dá o saber, o poder que dá a palavra, o poder que dá o direito de ser escutado, é para colocá-lo em função do fortalecimento dessas capacidades, do empoderamento e da inclusão dos setores com os quais trabalhamos (Cendales e Mariño, 2006. p. 63).

Então tem uma questão ideológica por trás disso tudo. E a questão ideológica, política é: qual é o projeto de educação que de fato está acontecendo? Quais são os projetos que estão acontecendo? Nós estamos fazendo educação para o povo ou não? E educar o povo significa aniquilar suas culturas impondo uma cultura eurocêntrica? A gente precisa responder a isso: quais são os projetos de sociedade que os sistemas educacionais no Brasil têm respondido (dos quais os educadores são verdadeiros embaixadores) e procurado fazer? Daí que surge o questionamento: seria a etnomatemática uma matemática inclusiva?

Uma nova proposta de ensino

A humanidade tem como prioridade alcançar a paz. Este novo capítulo do nosso diálogo precisa ser iniciado com um trecho da transcrição da palestra de D’Ambrósio realizada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2000. Disse ele:

  • Examinando a insegurança total e o deplorável estado atual da humanidade, testemunhamos, pela nossa própria experiência ou pelo que observamos na mídia, violações freqüentes da paz, em todas as suas dimensões [militar, ambiental, social, interior], todas possíveis somente pela utilização, perversa, de instrumentos tecnológicos e científicos que puderam ser desenvolvidas graças à existência do instrumental matemático. É inegável que, como matemáticos e educadores matemáticos, não podemos ser responsabilizados pelo mau uso que se faz desse instrumental. Mas, sim, temos responsabilidade na formação integral dos nossos alunos. É natural, portanto, nos perguntarmos “onde foi que erramos?”, “por que persistimos no erro?”. Somos levados a concluir que fomos capazes de transmitir bons conhecimentos, mas fomos incapazes de transmitir valores e uma ética maior (D’Ambrósio, 2000. Disponível na internet).

Vejam que, segundo ele, a Matemática deveria ter sido um instrumento que pudesse promover o desenvolvimento da humanidade de forma solidária e integral, sem exclusão, sem perversidade que pudesse aviltar a própria humanidade. Ele também aponta onde foi que erramos. Erramos quando transmitimos conhecimentos e esquecemos de transmitir valores e uma ética maior. Ora, um aluno de 11, 12 anos de idade, estudando a 7ª. ou 8ª. série, que vive num sistema extremamente competitivo, onde o consumo permite classificar as pessoas a partir daquilo que elas consomem; numa sociedade em que se prioriza o consumo além das necessidades, cujo produtos são vistos por suas marcas em detrimento da qualidade, a matemática pode oferecer uma contribuição para a compreensão desta realidade. Quantas pessoas se endividam comprando supérfluos atraídos pela facilidade de crédito de longo prazo? Nesta armadilha do marketing comercial acabam pagando dois produtos e ficando com apenas um e os educadores insistem nos conteúdos que nenhuma relação tem com a prática diária deles. Vejam este fragmento de uma prova de matemática de uma aluna da 8ª. série (8º. ano) do ensino fundamental do Instituto Evangélico de Austin3:

Para a aluna que fez esta prova4, este assunto nada tem a ver com o seu fazer do dia-a-dia e segundo ela, nunca vai utilizar isso na sua vida. Logo, não sabe por que estuda geometria. Daí que concluímos que este assunto geometria é tão importante para todos nós quanto saber o resultado da soma 2 + 2; mas o modo como está sendo conduzido o ensino da matéria é que provoca esta sensação de inutilidade. Ora, a perspectiva tradicional começou lá no século XIX com Herbart, que dizia que a escola tem um papel fundamental: ela precisa libertar as pessoas da ignorância, do não saber. Porque? Porque a ignorância promove a desigualdade e promove a marginalidade. Funciona até como papel de auto-exclusão. Então o papel da escola é livrar as pessoas da ignorância dando para elas a luz do conhecimento, a luz do saber (Saviani, 1999).

Mas Schwartzman (2005) diz que as pessoas até tem acesso à escola, mas pouco (ou nada) aprendem. E por qual razão não aprendem? Não aprendem porque não vêem concreticidade naquilo que está sendo ensinado. Não aprendem porque o natural instinto de preservação cultural lhes são inerentes e relutam contra um eurocentrismo presente no paradigma educacional. Porque não querem abrir mão daquilo que lhes garantem a sobrevivência nesta sociedade excludente que é o saber constituído na prática comunitária, como dizem Cendales e Mariño (2006):

  • A primeira dimensão se refere ao saber cotidiano e ao saber elaborado. O primeiro é um saber empírico ligado à solução de problemas, saber compartilhado que transcende o indivíduo e é assumido como certeza básica. O segundo está relacionado a princípios de pensamento mais abstratos, com maior grau de sistematização. Nesse campo se enquadra a sabedoria popular (p. 31).
Este saber primário ligado à solução de problemas foi que orientou a pesquisa de Carraher e outros (1995) tratando da Matemática Escrita versus Matemática Oral, eles concluem apontando para o reconhecimento e a valorização da Matemática oral largamente utilizada por vendedores autônomos que nunca ou forma parcamente alfabetizados. Eles salientam que é importante que “professores reconheçam, entendam e valorizem a matemática oral, especialmente aqueles que lidam com alunos que têm oportunidade de trabalhar no setor informal da economia” (p. 65).

Sobre este assunto posso relatar uma experiência muito pessoal. Meu pai, Lair Ferreira dos Santos, nunca foi à escola. Morreu em 1989 aos 66 anos de idade. Sua profissão era marceneiro. Isso me deixava curioso. Como pode um homem que jamais foi à escola construir móveis com medidas perfeitas para encaixe entre paredes e teto? Como podia saber onde furar a madeira para os parafusos que uniam as peças? Se lhe perguntássemos sobre ângulos de 90º ele dizia ignorar, não sabia explicar o que era. Entretanto, se lhe pedíssemos para cortar uma madeira no esquadro, lá nos vinha ele com uma madeira cortada num ângulo de 90º. É verdade que meu pai não foi à escola por outras razões diferentes das que provocam a evasão escolar nos dias de hoje e provocam a repulsa pelo ensino da matemática. Mas o que há de comum são saberes que foram constituídos na suas práticas de vida. Saberes que na escola tradicional são completamente aniquilados. E são aniquilados porquê? Porque a escola tradicional reproduz uma sociedade excludente, desigual, que atua para a manutenção do status quo de poucos privilegiados. Isso tem relação com a estrutura de poder. Ou seja, quem sabe domina e quem não sabe será dominado. Daí que Cendales e Maryño (2006) dizem que
  • ... o primeiro a existir foi o saber comunitário, o saber de todos, do qual se vai separando, um saber que se torna legítimo e verdadeiro, associado a diferentes instâncias de poder, em oposição ao saber de consenso, ao saber comunitário no qual se legitimou. A diferença, então, não é de qualidade, mas de sua relação ou não com o poder (p. 29)

Teve um francês que observa justamente como que a ação educativa contribui ao fim e ao cabo, não para criar mais oportunidades ou transformar essa sociedade, mas para mantê-la justamente como ela é. Althusser questiona (Saviani, 1999): para que (ou para quem) serve a escola? Ela serve para moldar a cabeça das pessoas para elas se comportarem direitinho como os profissionais se comportavam nas fábricas no início do Século XX. Por isso, por exemplo, é que existem as provas. Para que servem as provas? Para o aluno responder aquilo que é pedido à ele. E o que é pedido ao aluno? Aquilo que alguém disse e que o aluno tem que repetir. E ele repete. Foi treinado pra isso. Para quê? Pra cumprir as ordens, para obedecer ao dominador. As provas não são utilizadas pelo educador para verificar onde está dando certo e onde tem que reformular sua maneira de ensinar.

Essa lógica introjetada se transforma numa mentalidade fechada, mas que a sociedade aceita. Isso é ideologia! Por isso, a escola também é um aparelho ideológico de Estado que reproduz a sociedade tal qual ela é, como disse Althusser. Pra ele então, a escola é reprodutora e excludente. Bourdier e Passerón, citados por Saviani (1999) chegaram a uma conclusão semelhante à de Althusser, mas observando que a escola produz um comportamento gerador de uma violência simbólica que faz com que as pessoas aceitem não só as regras, mas aceitem as violações das suas visões de mundo que elas tem. As pessoas chegam às escolas com diferentes visões e as escolas, o aparelho educativo, simplesmente aniquila as visões e o senso comum que as pessoas têm, desrespeitam completamente os seus saberes e lhes dá ciclos absolutamente distintos dessas visões de vida. E para quê suprimem esses saberes? Pra fazer com que as pessoas possam manter o que já está aí, a desigualdade presente.

Possenti (1996. p. 18), em sua obra que discute o preconceito lingüístico corporificado no ensino da gramática normativa nas escolas, destaca a violência (ou injustiça) impor a um grupo os valores de outro, assim como Luft (2000. p. 95) diz que a classe hegemônica impõe um ensino da norma culta para manter a sociedade tal como ela se apresenta, com suas profundas desigualdades e injustiças. É a manutenção do status quo que faz milhares de homens e mulheres “vítimas de verdadeira inquisição gramatical”.

A teoria dos conteúdos críticos, que diz da necessidade de se ter um conteúdo crítico que leva as pessoas a ver uma nova forma de construir o mundo, uma nova forma de construção social, no ensino da Matemática, é apresentada por D’Ambrósio e culmina com a criação do Grupo de Estudos Internacional sobre Etnomatemática5 (ISGEm), cujo núcleo percursor se forma na Conferência Anual dos Professores de Matemática em 1985 na cidade de Adelaide, Austrália. No primeiro boletim desta nova organização para a educação e do ensino da Matemática, o artigo Etnomatemática: o que poderia ser? traz uma alusão ao doutor D’Ambrósio como criador do termo Etnomatemática. Diz o boletim: “A invenção do termo ‘Etnomatemática’ provavelmente pode ser creditado a Ubiratan D’Ambrósio. Em conferências e artigos recentes, o professor D’Ambrósio tem enfatizado as influências de fatores socioculturais no ensinamento e na aprendizagem das matemáticas”. Este mesmo artigo argumenta que Etnomatemática poderia se chamar ‘Matemáticas do meio ambiente’ ou ‘Matemáticas das comunidades’ salientando que ela se caracteriza por se apresentar de maneira particular nos grupos culturais específicos que realizam tarefas de classificação, ordenamento, contagem e medição (ISGEm, 1985. disponível na internet)

D’Ambrósio apresenta a Etnomatemática como uma expressão das minorias como possibilidade de inclusão, como pode ser observado em suas palavras extraídas de um artigo disponível na internet afirmando que

  • A etnomatemática se encaixa nessa reflexão sobre a descolonização e a verdadeira abertura de possibilidades de acesso para o subordinado, para o marginalizado e para o excluído. A estratégia mais promissora para a educação nas sociedades em transição da subordinação para a autonomia é restaurar a dignidade de seus indivíduos, reconhecendo e respeitando suas raízes. Essa é, no meu pensar, a vertente mais importante da etnomatemática (D’Ambrósio, 2000. disponível na internet)

Mas o próprio autor se antecipa para dizer que a Etnomatemática não substituirá a Matemática Acadêmica que, segundo ele, “é essencial para um indivíduo ser atuante no mundo moderno”. O que ele propõe é uma inclusão dos valores da humanidade como maneira de fortalecer as raízes da Matemática, e fazer dela (a Matemática) instrumento vivo, que está presente no aqui (espaço) e no agora (tempo). Com efeito, o processo de globalização requer um respeito profundo às diversidades, às diferenças. As relações internacionais, a mobilidade de pessoas e famílias, pressupõe uma superação dos conflitos culturais que dependem substancialmente “de uma ética que resulta do indivíduo conhecer-se e conhecer a sua cultura e respeitar a cultura do outro” (Idem).

Para esses meninos e meninas (como os que entrevistei no IEEA) está reservado o futuro. A paz futura, o respeito ao meio ambiente e ao próximo; a superação das iniqüidades, das injustiças, da arrogância e da exclusão, depende em muito do que podemos oferecer a eles. Esse pressuposto alternativo é apresentado como uma missão inovadora para as educadoras e os educadores. Daí que D’Ambrósio invoca os educadores/as matemáticos a: “...estar em sintonia com a grande missão de educador. [e perceber que] ...há muito mais na sua missão de educador do que ensinar a fazer continhas ou a resolver equações e problemas absolutamente artificiais, mesmo que, muitas vezes, com a aparência de estar se referindo a fatos reais” (Idem).

A esperança que se vê na proposta é a de diminuir a negatividade da pesquisa realizada nas escolas de São Paulo e, também, do gráfico anteriormente elaborado a partir de uma análise superficial sobre as notas das provas de Matemática dos alunos de 7ª. e 8ª. séries do IEEA. A esperança se estende à necessidade que temos de produzir uma geração que seja capaz de diminuir as desigualdades e os problemas sociais. Para isto, educadores e educadoras precisam tomar consciência de uma mudança de atitude. Uma mudança didática que implica no respeito aos saberes previamente constituídos e que os educandos trazem à escola, aproximando o ensino da Matemática Acadêmica à realidade de todos e de cada um.

Conclusão

Para efeitos de conclusão do nosso diálogo, queremos reafirmar que este paradigma tradicional de ensino, de uma escola que teima em ser igual ao início do século passado, não será uma escola transformadora e formadora de sujeitos capazes de transformar o estado atual das coisas. Como disse Saviani (1999), ela só reproduz a sociedade tal como ela é, ou seja, desigual, excludente, eurocêntrica. É isto que desejamos ou queremos uma sociedade com uma identidade própria, capaz de interagir com o mundo respeitando as diversas culturas sem se deixar aniquilar por outras? Se desejamos uma sociedade mais justa, mais solidária, mais humanizada, cabe-nos mudar nossas atitudes. Mudar a forma de educar pode ser o melhor começo de quem se propõe a ensinar.

A Etnomatemática é uma proposta inclusiva sim! O que ela propõe não é uma abnegação da Matemática Acadêmica, mas um modo de fortalecer o ensino/aprendizagem desta ciência. Daí que ensinar Matemática parte do pressuposto conhecer os saberes etnomatemáticos que os alunos trazem à escola. É aproximar o ensino/aprendizagem da Matemática Acadêmica à realidade de todos e de cada aluno ou aluna, diminuindo, assim, a rejeição que os meninos e meninas internalizam quando são apresentados á ela.

Para aqueles que consideram a Matemática Acadêmica imutável, não sujeita às adaptações dos grupos ou classes culturais, há que se recordar Possenti (1996) e Luft (2000) quando argumentam contra o ensino de uma gramática pesadamente lusitana dizendo que a manutenção do ensino dela como ela está, só favorece a exclusão e o preconceito social, pois nesta seara, quem sabe ou domina a norma culta da Língua Portuguesa como a Matemática Acadêmica, se mantém como dominador daquele que está à margem delas.

¹) Entrevista realizada no Instituto Evangélico de Austin para um trabalho de Atividade Complementar da disciplina Políticas Públicas da Educação Básica. Resumo adicionado neste trabalho como anexo 1.
²) Uma das provas foi tomada como exemplo e adicionada como anexo 2.
3) Instituto Evangélico de Austin: escola onde estudam os alunos de 7a. e 8a. séries que entrevistei para um trabalho de Atividade Complementar da disciplina Políticas Públicas da Educação Básica.
4) Folha da prova em anexo.
5) Originalmente o termo se refere a Etnomatemáticas, a singularização é uma dedução minha.

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