sábado, 10 de novembro de 2007

O Rei está nú!


Um debate contribuindo para definir a função da pré-escola
Rildo Ferreira

Miriam Abramovay e Sonia Kramer propõe um debate sobre as funções da pré-escola a partir de um conjunto de ações que permearam a pré-escola desde a sua introdução na segunda metade do século XIX. A implementação da educação infantil tinha o papel de solucionar os problemas da evasão e da repetência nas séries iniciais do 1º. grau. Assim, ela se apresenta como redentora, bandeira que se aposenta com um Programa Nacional de Educação Pré-Escolar e hasteia outra com objetivos em si mesma.

Tal pressuposto é colocado como objetivo da pré-escola sem o desenvolvimento de um processo de participação popular -estes são chamados a contribuir como voluntários-; sem um treinamento coeso e sistemático. Portanto, praticava-se aglutinar um conjunto (grande) de crianças em galpões e revezar voluntários para tomar conta das crianças sem qualquer preparação prévia.

Abramovay e kramer questionam se os professores já não possuem problemas suficientes nas séries iniciais, se não seria melhor cuidas desta etapa e deixar a pré-escola para as entidades de assistência social e se não é demanda populacional somente creches sem cunho pedagógico que libere as mulheres para o trabalho. Qual é o desafio agora? Discutir a função da pré-escola como contribuição dialética.

Quais foram as funções da pré-escola e quais paradigmas serviram para a implementação da pré-escola no Brasil?

a) Guardar as crianças: as grandes transformações sociais, econômicas e políticas européias a partir do século XVIII influenciam as creches com caráter assistencialista e serviam de guardiãs para crianças órfãs e filhas de trabalhadores.

b) Compensar as carências infantis: durante o século XIX, uma nova função é atribuída à educação pré-escolar, mais relacionada à idéia de educação do que de assistência. Essa pré-escola tem como função compensar as deficiências das crianças, sua miséria, a negligências de suas famílias, confundindo-se com as origens de educação compensatória.

Essa teoria, a da educação compensatória, ganha contornos mais nítidos depois da 2ª. Guerra mundial nos EUA e na Europa com a influência das teorias do desenvolvimento infantil e da psicanálise de um lado, e do outro, com abordagem da privação cultural, os estudos lingüísticos e antropológicos. Esta última fortalece o pré-conceito de que a pré-escola seria incapaz de suprir as ‘carências’, ‘deficiências’ culturais, lingüísticas e afetivas das crianças oriundas das classes populares.

Então a pré-escola era vista como preparatória e que resolveria o problema do fracasso que afetava as crianças negras e filhas de migrantes naqueles países. As crianças das classes populares eram vistas com preconceito e as classes dominantes encobriam os conceitos ideológicos que promovia a divisão de classes. Era preciso adestrar as crianças nas habilidades e conhecimentos que não dominavam e isso estava vinculado à compensação das carências infantis.


Na década de 70, do século passado, essa concepção de pré-escola chega ao nosso país. No discurso oficial “...as crianças ...apresentam-se destituídas das noções de lateralidade, de alto e baixo, sem coordenação motora, sem vocabulário, sem comunicação e sem sociabilidade. Isso obriga que as escolas, quando bem orientadas, o que ocorre em proporção aquém do desejável, percam alguns meses, no início do ano letivo, na tentativa de compensar em parte essas carências com a ministração de atividades preparatórias da alfabetização.”

As autoras citam Ferrari e Gaspary que mostraram que a expansão das matrículas para o ensino infantil privilegiava os menos carentes, atendendo, inicialmente, crianças dos grupos populacionais com poder aquisitivo para custear a pré-escola particular e, lentamente, ir se estendendo essa educação às grandes massas.

Essa educação compensatória partiu de uma idéia de que as famílias não conseguem dar às crianças condições para o seu bom desempenho na escola. As crianças são consideradas deficientes culturalmente seguindo um princípio de que lhes faltam elementos básicos que lhes garantam sucesso escolar. A partir desse princípio, a pré-escola poderia suprir as carências culturais, nutricionais, afetivas, e garantir uma igualdade de oportunidades a todas as crianças.

Mas essa política compensatória, assim como a teoria da privação cultural, têm sido questionada nos últimos anos na medida que não servem como benefício efetivo às crianças das classes populares, mas contribuiu para discriminá-las e marginalizá-las precocemente. Essas críticas foram incorporadas nos discursos oficiais e propõe o desenvolvimento global e harmônico da criança de acordo com suas características físicas e psicológicas (a pré-escola com objetivos em si mesma).

Citam o Programa Nacional de Educação Pré-Escolar para mostrar que ele está cheio de inconsistência e, ao contrário de atacar o problema na sua essência, ele reproduz a teoria da política compensatória revestido com uma roupagem nova. É, aqui, que a autora propõe concluindo que ‘o rei está nu!’.

Ora, com esse paradigma, a pré-escola tinha como objetivo superar os problemas de cunho social, e estes, por tabela, os educacionais. A dialética sobre que tipo de educação infantil traria reais contribuições às crianças das classes populares é colocada à margem, pois a pré-escola é considerada importante em si e por si mesma. E onde ficam as questões como “quantidade de alunos por unidade, de forma a garantir um trabalho sistemático de acompanhamento das crianças; estratégias de treinamento –e suporte técnico- que assegurem uma prática pedagógica consistente; um sistema de supervisão contínua que permita um repensar das práticas desenvolvidas; formas de avaliação –que envolvam as pessoas dos diversos níveis do programa- capazes de oferecer subsídios para a sua reestruturação; efetiva vinculação trabalhista que substitua o voluntariado das mães?

Para Jobim e Souza e Kraemer, é preciso avançar na democratização da pré-escola priorizando as classes populares sem marginalizar as outras classes, promovendo uma pré-escola com função pedagógica onde seja possível instrumentalizar as crianças tomando a “realidade e os conhecimentos infantis como ponto de partida, e os amplia, através de atividades que têm um significado concreto para a vida das crianças e que, simultaneamente, asseguram a aquisição de novos conhecimentos.”

O papel da pré-escola se degenera quando a psicologização e a medicalização das relações intra-escolares declinam hábitos que se tornam mais importantes que o ‘simples’ ensinar. A inversão da prioridade pedagógica, aquilo que Dermeval Saviani explica na “teoria da curvatura da vara”, aponta para uma prática de hábitos que promovam o “incentivo à criatividade e à descoberta das crianças, ao jogo e à espontaneidade” que proporcionem as realizações infantis.

Um programa que contemple uma práxis pedagógica focada no “incentivo à criatividade e à descoberta das crianças, ao jogo e à espontaneidade” requer capacitação (antes e durante); supervisão sem desprezar a dotação de recursos financeiros específicos e uma definição da carreira de Recursos Humanos.

Isso implica que reconhecer que, na prática, para favorecer o processo de alfabetização, é preciso transpor as barreiras da escrita, da leitura e do cálculo e permitir a manifestação da criança tratando da sua realidade e dos objetos que estão ao seu alcance., tornando a escrita, a leitura e o cálculo, partes integrantes de um processo pedagógico que começa com as complexidades sensoriais e motoras no início, seguida de representação simbólica, dramatização, construção, modelagem, reconhecimento de figuras e símbolos e o desenvolvimento da linguagem, até a formação de um pensamento lógico.


Bibliografia
Jobim e Souza. Solange. Kramer. Sonia. Educação ou Tutela? A criança de 0 a 6 anos. Loyola. 2ª. Ed. ?.?.

3 comentários:

Neodo disse...

Olá.. vc teria alguma informação sobre a teoria da privação cultural?

Anônimo disse...

Caríssimo.
Vou deixar pra vc um sequência de links que falam do assunto:
1
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302004000100010&script=sci_arttext
2
http://monografias.brasilescola.com/pedagogia/a-historia-das-creches
3
http://www.flem.org.br/pei/15.pdf
4
http://143.106.58.55/revista/rst/rst.php?op=view_metadata&id=168
5
http://inforum.insite.com.br/arquivos/25018/textoVIISEMOC.doc

Espero ter ajudado. Boa sorte!

Suzana Morgado disse...

Olá Rildo

Estou concluindo minha dissertação em políticas públicas para a educação infantil e estou procurando ha muito tempo os Cadernos Cedes n° 9 que tem o texto da Kramer o Rei está nú, mas não o encontro, na biblioteca aqui da Universidade não tem, voce teria ele, teria como disponibilizar pra mim. Agradeço desde já.

Att.
Suzana Morgado